PENEDO DO SÃO FRANCISCO

PENEDO DO SÃO FRANCISCO
Pierre Chalita - Óleo sobre Tela

segunda-feira, 16 de abril de 2012

AINDA O CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE CARLOS MOLITERNO

ABRACADABRA

Carlos Méro *

   "Invento a Ilha numa tarde clara."- Confessa Carlos Moliterno no primeiro verso do soneto inaugural de A Ilha. 
   “E invento a Estrela numa noite escura.” – Logo adiante acrescenta, para finalmente reconhecer: - “Meu ser então divido e multiplico”.
    É quando dá para recordar a fórmula mágica que, pelo que dizem alguns, provém não mais nem menos que do aramaico (Avra Kedabra), idioma que teria sido  falado por Jesus, sentença mística que se poderia traduzir como: “ Com a palavra crio”.
   Pois foi isso mesmo o que fez Carlos Moliterno, eis que se valendo da palavra, como de fato se valeu, criou a sua ilha imaginária e nela assentou os seus ais e os seus sorrisos, as suas esperanças e os seus ideais, os seus sonhos e os seus desenganos.
   Um poder, aliás, que só o eu lírico carrega, já que autossuficiência, como adverte Solange Lages, que permite ao poeta transpor as contingências humanas, vencer as limitações da criatura e ascender à condição de Criador, a quem nada é impossível.
   Onipotência, segundo continua ela, que torna o poeta capaz de modificar a própria genética, dividir-se e multiplicar-se, a ponto de, como no caso, “interferir no mundo exterior, inventando para si um acidente geográfico, da mesma forma que Zeus fez surgir a ilha de Delos, onde Leto deu à luz Apolo, o deus solar da inspiração e da Poesia”.
   E o mais mágico é que a Ilha de Carlos Moliterno persiste a ser criada e recriada a cada dia, nas divagações de quantos se entregam ao saborear dos seus versos.
   E com isso a também renovada revelação da verdade de que se convenceu o poeta, ciente de que a sua Ilha haveria de ser permanentemente reinventada, de que ele, como todos os outros, carecia de a cada dia reinventar o próprio destino, exercitando, assim, os dons da liberdade e da vontade, como aliás proclama o pensar existencialista de Jean-Paul Sartre.
   Carlos Moliterno o alfaiate, o jornalista, o crítico literário, o homem de letras, o Presidente, por anos a fio, da Academia Alagoana de Letras, mas antes de mais nada o poeta, ele cujo rasgar do primeiro vagido acaba de contar cem anos.
   Encantou-se há poucos anos, é certo, mas não se calou, pois que se a imortalidade acadêmica é uma miragem, não o é aquela das produções do espírito, das criações artísticas, desde que valiosas, pois que se pregam na história e zombam da transitoriedade da existência física do artista.
   Daí por que, sem qualquer esforço piegas, só há dizer que Carlos Moliterno continua vivente e pensante nos seus versos, que a sua Ilha imaginária, a cada instante, persiste a lhe recontar a sua memória.
   Não foi sem razão, por conseguinte, que a Academia Alagoana de Letras, em sua  mais recente sessão ordinária, prestou-lhe justa e oportuna homenagem.
   Homenagem ao homem, é certo, a um dos seus membros mais ilustres, sem dúvida, a um dos seus Presidentes mais emblemáticos, induvidosamente, mas acima de tudo ao poeta.

* Carlos Méro é Presidente da Academia Alagoana de Letras

quarta-feira, 11 de abril de 2012

CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO POETA CARLOS MOLITERNO


A Academia Alagoana de Letras, em reunião ordinária realizada no dia 11 de abril de 2012, prestou justa homenagem ao poeta CARLOS MOLITERNO, cujo centenário de nascimento é celebrado no fluente ano, ele que, autor do festejado A Ilha, durante sucessivos mandatos exerceu, com edificantes dedicação e eficiência, a Presidência daquela instituição.  Na oportunidade, ouviu-se erudito pronunciamento da escritora Solange Chalita, cujo conteúdo vê-se adiante transcrito.

Carlos Moliterno
 
A ILHA DA IMORTALIDADE
                                 
 O poeta é aquele que faz, que produz, que inventa com palavras, mais especificamente quem escreve versos como confirma a origem grega do vocábulo, língua em que o verbo, da mesma raiz, “poieo” é empregado em várias acepções, todas girando em torno do ato de fazer ou produzir tanto no plano material quanto espiritual. Assim, este verbo é usado, naquele idioma, para significar a construção de  um templo ,  de um altar, a realização artística de uma estátua, a produção de uma tragédia, a composição de versos,etc. Na língua portuguesa, este último sentido predominou no substantivo herdado, prevalecendo nele  a denotação do criar do nada, do construir milagrosamente no plano imaterial, sendo o poeta visto como um demiurgo, um mago de poderes ilimitados.
Esta referência etimológica é  evocada com o propósito de encaminhar  a leitura que pretendemos proceder da obra poética, A Ilha, escrita por Carlos Moliterno,editada pela primeira vez em 1968 e agora reeditada pela Editora da Universidade Federal de Alagoas.
O livro em questão compõe-se de  59 sonetos, encadeados por uma  rigorosa lógica interior ,trabalho de quem domina a arte poética e sabe articular  com  precisão as unidades de sentido sem prejudicar o tom encantatório do macropoema.
No  Soneto  1, o poeta  investe-se de direitos  ilimitados, fundamento do seu existir literário,como  mostram os seguintes versos:  “ Invento a Ilha numa tarde clara”, “E invento a Estrela numa noite escura”, “Meu ser então divido e multiplico” . A decisão  da prática destes atos consecutivos  revela a auto-suficiência do eu lírico que, transpondo as contingências humanas, ascende à condição do Criador a quem  nada é impossível e torna-se capaz   de  modificar a própria genética, dividindo-se e multiplicando-se, como também de interferir  no mundo exterior, inventando para si um acidente geográfico, da mesma forma que Zeus fez surgir a ilha de Delos onde Leto deu à luz Apolo, o deus solar da inspiração e da Poesia.
Esta conquista primordial de um espaço poético encampa também o  desejo de domínio sobre o tempo, refletido no movimento  lúdico de fluxo e refluxo em que  o texto se organiza. O sentido de metáfora do poder  que A Ilha assume, durante o desenvolvimento do poema, fia-se e desfia-se alternadamente,num exercício penelopiano de volta ao princípio. Afinal, a vida exige um contínuo estado de alerta contra as ameaças de destruição.A luta entre Eros e Tanatos é interminável, na esfera dos seres vivos. Uma Ilha recém-criada padece dos  constantes  perigos vindos do mar.Se esta Ilha é  um rosto, como declara o verso “ e invento a Ilha azul no mapa de meu rosto”(Soneto 8)e se, sobre ela ou sobre ele, acontecem constantes desabamentos,  destruidores do labor da construção,  também  os mesmos estão sujeitos aos obrigatórios e esperançosos  recomeços.
Refletindo aspectos do existencialismo sartriano,filosofia que dá ao homem  a possibilidade de construir seu próprio destino através do exercício da liberdade e da vontade, o  incansável poeta não se deixa abater pelos aniquilamentos  transitórios de sua Ilha, reinventando-a,  recompondo-a com a fé inabalável na importância do ofício de criar com a palavra. Sua missão instauradora multiplica contextos mágicos, adequados ao surgimento das possibilidades,  permitidas pela fantasia.  Instigado pelo desafio da luta, o eu lírico executa estranhos malabarismos, rompe as leis da física, permite cruzamentos estranhos e metamorfoses fantásticas num jogo de mutações miméticas entre Ilha/rosto/rosa/peixe.
Que sentimentos estariam embutidos nestas imagens simbólicas?
Para chegarmos à decodificação de tais conteúdos camuflados em formas mutantes, devemos primeiro  tentar caracterizar  a terra  firme por cuja existência luta o eu lírico. Seu projeto de utopia tem como modelo o paraíso anterior ao pecado,  com uma natureza perfeita, imutável, pronta para o pleno gozo dos sentidos, ou  será antes   o espaço da perda da inocência, de idílios malfadados,  de desintegração e morte?
Ilha que o poeta inventa necessita sempre de ser reinventada. Ela  traz o estigma da contingência, estando sujeita continuamente a transformações,  provocadas pelas erosões do meio físico ou da alma.Os efeitos negativos dessa dinâmica são compensados pelo desejo de transcendência, expresso simbolicamente pela Estrela, brilhando na noite escura e pelo pássaro branco de enormes asas espalmadas flutuando no céu como se lê no  Soneto  1, peça que contém, em germe, aspectos temáticos que os versos subseqüentes desdobram ,  como, por exemplo,  a necessidade do poeta de resistir à morte pela criação, consciente de que só o renascimento pode perpetuar o perecível.Tudo se faz pela luta , pela renovação, pelo retorno.
O macrotexto de A Ilha constituído de unidades  poéticas articuladas segundo uma  estrutura circular, lembrando as curvas das formas barrocas, ou a organização frasal repetitiva da música de Bach em que variações se desenvolvem em torno de um mesmo tema, remete  aos referenciais míticos que se acumulam em toda a obra.
Auxiliados por diretrizes da crítica junguiana, enxergamos Moliterno como um Sísifo que,  obstinadamente, resgata, pelo exercício da palavra, uma Ilha mítica, enraízada no inconsciente coletivo. Este território flutuante emerge do inconsciente de que o oceano  com suas águas revoltas é símbolo. O mar pertence  à Grande Mãe, Afrodite, deusa do amor, a um só tempo boa e terrível a quem prestavam obediência Posídon e os seres marinhos.Se se correlacionar esta Ilha  com o consciente (ego) formado de matéria arquetípica ativada ,  compreendem-se as constantes ameaças de destruição oriundas do inconsciente avassalador a provocar regressões no trajeto progressivo da energia vital básica.
Nesta atmosfera de conquista permanente  do espaço, onde  situar o esperado idílio do eu lírico  com a amada?
Esta união misteriosa só pode ser percebida através do desvelamento do conteúdo simbólico de  certas imagens recorrentes das quais a rosa e o peixe parecem as mais significativas conforme explicitam os  tercetos do Soneto12:Boiava assim a rosa que era peixe,/bem no meio das águas azuladas,/de um golfo manso que fendia a praia.//Se o sol luzia,a flor se abria ao sol,porém à noite o peixe cintilava,/ na alternação de escamas e de pétalas.
A preocupação do poeta de reinventar o sol cada manhã para tirar a Ilha da escuridão é tão antiga quanto o arquétipo do herói que o mito primitivo revelou. No espaço-tempo moliterniano, acontecem, entre  luz e sombra, manhã e noite, todas as transmutações  possíveis da matéria verbal.Quando o sol atinge o zênite e a forte claridade ilumina o mundo interior, dá-se o prazeroso encontro com a  amada  chamada por Jung de  anima  e que na Ilha   recebe o nome de Poesia.Então, tingida de sol, a flor de ouro é colhida pelos que merecem  a  imortalidade.


* SOLANGE Bérard Lages CHALITA é poeta, ensaista, crítica literária e pintora, ocupante da Cadeira nº 28 da Academia Alagoana de Letras e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e da União Brasileira de Escritores, além de Presidente do Conselho Deliberativo da Fundação Pierre Chalita.